Não importa se só tocam o primeiro acorde da canção. A gente escreve o resto em linhas tortas, nas portas da perseguição. Em paredes de banheiro ou nas folhas que o outono leva ao chão. Em livros de história seremos a memória dos dias que virão. Se é que eles virão...

Não importa se só tocam o primeiro verso da canção. A gente escreve o resto sem muita pressa, com muita precisão. Nos interessa o que não foi impresso e continua sendo escrito à mão, escrito à luz de velas, quase na escuridão. Longe da multidão...

(Humberto Gessinger - Exército de Um Homem Só)

domingo, 12 de dezembro de 2010

APENAS UMA QUESTÃO DE NEGÓCIOS

Ou “Como administrar um negócio sujo”
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Depois de ler algumas atrocidades de pessoas muito bem informadas pela rede globo em alguns jornais e descobrindo que qualquer imbecil que tenha um pequeno domínio da escrita consegue publicar (ok, podem me incluir nessa) resolvi fazer meu derradeiro texto sobre essa falácia da grande mídia. Eis o mesmo abaixo:




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Enquanto as pessoas continuam sentadas em suas poltronas, assistindo os “derradeiros momentos” da guerra televisionada do Rio de Janeiro, o crime organizado (formado por empresários, políticos, traficantes de armas e drogas – que, sempre é bom salientar, não moram nas favelas) começa a repensar as suas estratégias de mercado. Enquanto nós, papagaios de telejornal, continuamos achando que a TV está fazendo todo esse show pirotécnico com o objetivo de mostrar apenas uma história (vista por apenas um ângulo) e não porque a sua audiência sobe vertiginosamente e seu lucro vai às alturas, um novo desenho da venda e distribuição de drogas no varejo na cidade maravilhosa começa a se definir.

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Não é de hoje que os empresários da droga já se preparavam para abandonar o modelo decadente e falido das quadrilhas, um modelo extremamente caro e difícil de controlar. Manter um pequeno exército (não tão pequeno assim) nos morros cariocas, com o objetivo de dominar territórios, armazenar e distribuir drogas tem se tornado insustentável e o golpe de misericórdia dado pelo governo do Rio no Complexo do Alemão termina de vez, em grande parte, com a era do tráfico feito a base da violência desenfreada e do terror.

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Nesse momento cabe nos perguntarmos se estamos realmente interessados em debater esse assunto e preocupados com o que virá depois que as câmeras tirarem o seu foco dos morros e trocarem a bola da vez. Vamos continuar a falar (e pensar) sobre isso ou vamos mais uma vez deixar que a televisão nos dê a pauta de nossas conversas e preocupações?

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Se tivermos um pouco de bom senso e Inteligência a pergunta agora é: Está tudo resolvido (como foi afirmado aos quatro cantos pela TV, em “um dia que marca o início de uma nova era para o Rio”)? Faço aqui perguntas que me parecem extremamente infantil, mas, dados os últimos comentários e “análises”, elas são necessárias: O tráfico de drogas acabou? As pessoas vão parar de consumir drogas ilícitas? Os traficantes deixarão de existir?

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Desde a prisão de Fernandinho Beira-Mar que as quadrilhas de traficantes começaram a adotar outras posturas em relação à forma de conduzir os seus “negócios”. Beira-Mar foi o último traficante de morro que ainda trazia a antiga conduta de não usar o seu “produtos”, seguia a linha do famoso Escadinha (o traficante dos anos 70 que proibia seus soldados de vender cocaína, por “questões morais”). O que se viu depois da prisão de Beira-Mar (que mesmo administrando seus negócios como general dos grandes traficantes engravatados de dentro de um presídio, não tem controle sobre o modus operandi de seus asseclas) foi uma carnificina, dezenas de “peixes pequenos” querendo abocanhar um pedacinho do império do traficante preso. Esses novos chefes de quadrilhas eram, quase que na sua totalidade, viciados em drogas que vão da cocaína ao crack, os seja, péssimos administradores. A partir daí o tráfico no Rio tornou-se uma guerra de gangues, uma disputa violenta por territórios, uma sequencia de atos terroristas se sucedia a cada vez que esses novos traficantes se viam ameaçados pela repressão da polícia; como animais encurralados faziam banhos de sangue por qualquer motivo, fosse com a população do centro da cidade, com a polícia e também nas comunidades dos morros (isso é o que a TV insiste em chamar de crime organizado). A população das favelas já não tinha mais aquela confiança (mesmo que por medo) nos traficantes. O regime de tirania dos velhos traficantes, que diziam cuidar de seu povo, foi substituído pela barbárie dos novos traficantes, usuários de sua própria e destrutiva droga.

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Se não estava bom pra favela, também não estava bom para os grandes negociantes de drogas e de armas. O Governo do Rio de Janeiro tomar uma providência era somente uma questão de tempo. No mundo dos negócios é preciso prever o futuro e prepara-se para ele. Os traficantes têm de rodar o PDCA de suas empresas, reavaliar e colocar em prática novas formar de administrar seu lucrativo negócio constantemente. Mas então? Quem comanda o espetáculo agora? Qual é essa nova era que a TV anuncia?
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Ao falar sobre o que a polícia fluminense deveria fazer para combater o tráfico de drogas ilícitas no Rio o sociólogo Luiz Eduardo Soares foi categórico ao dizer: “Em primeiro lugar, deveriam parar de traficar e de associar-se aos traficantes”; essa é a grande questão. A chamada banda podre da polícia fluminense é quem está assumindo o lugar das quadrilhas através do que conhecemos pelo nome de milícias. Saliento que quando falamos dessa “banda podre” estamos falando de um problema crônico, levantado e combatido por muitas pessoas, como alguns deputados e renomados cientistas políticos. Também devemos saber que essa “banda podre” compreende milhares de policiais e aqueles que não se juntam a ela (que também são milhares) tem de ficar quietos, sob risco até mesmo de morte. Não há espaço para aqueles que acreditam nos mocinhos e bandidos da mídia nessa discussão, ela é séria, complexa e profunda.

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As milícias apresentam uma forma mais sustentável de gerenciar os negócios do tráfico. São mais “limpas”, mais confiáveis e baratas (possuem as suas próprias armas), tem uma auto nível de organização e ainda oferecem outras vantagens de brinde, que é a prestação de outros serviços, como o extermínio de pequenos criminosos e a cobrança de “proteção” dos estabelecimentos comerciais dos morros e arredores; sem falar no apreço velado que muitos de nós preconceituosamente temos pelos policiais que matam marginais e “limpam” a cidade com suas próprias mãos. O crime agora terá quase que uma cara institucional, a venda de drogas no varejo será feita como contrabando, discreta e sem chamar a atenção da mídia, as negociações não serão mais nas bocas de fumo e sim na forma de delivery, as mortes na favela não serão mais brutais e em praça pública, serão feitas em porões e quartos escuros. Ou seja, eles entendem de administração e marketing, qualquer MBA não faria um projeto tão rentável assim, respeitando todas as tendências de mercado.

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O tráfico de drogas acabou? Óbvio que não, ele se adaptou a realidade de mercado. As pessoas vão parar de consumir drogas? As drogas, tanto ilícitas quanto lícitas, são um problema de saúde pública e nem um milhão de soldados e tanques resolverão isso. Os traficantes deixarão de existir? Não. Outros virão para tomar o lugar deles, sejam novas quadrilhas tentando se rearticular sejam milicianos, eles não deixarão de existir enquanto não houver políticas públicas e sociais de saúde para esse assunto.

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E para nós, que não moramos no morro, o que muda? Para nós muda muita coisa. Os morros estão silenciosos agora, eles não descerão mais para nos incomodar. Os holofotes aos poucos deixarão de lado as favelas e nos darão outra coisa para nos distrair. Estamos felizes, o regime de terror das quadrilhas está prestes a acabar, o morro agora tem um outro regime de terror; esse, mais silencioso, mais discreto. Não precisaremos mais ser incomodados pela barbárie, desumanidade e miséria das favelas. As pessoas do morro continuam com fome, sem educação, sem saúde, mas os novos tiranos nos garantem que isso só ficará lá. Eles estão bem longe de nós agora, podemos finalmente desligar a TV e dormir em paz.

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