Não importa se só tocam o primeiro acorde da canção. A gente escreve o resto em linhas tortas, nas portas da perseguição. Em paredes de banheiro ou nas folhas que o outono leva ao chão. Em livros de história seremos a memória dos dias que virão. Se é que eles virão...

Não importa se só tocam o primeiro verso da canção. A gente escreve o resto sem muita pressa, com muita precisão. Nos interessa o que não foi impresso e continua sendo escrito à mão, escrito à luz de velas, quase na escuridão. Longe da multidão...

(Humberto Gessinger - Exército de Um Homem Só)

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

PARA QUE(M) SERVE A TUA ARTE?

.
.
.
.

.
.
Todo artista tem uma concepção própria do mundo e da realidade, uma visão mais sensível do que a do senso comum e bastante particular. Durante o sublime momento de seu processo criativo sua práxis independe das noções de ética e até mesmo moral de uma sociedade, ele é o senhor de seu universo, um deus, senhor de todos os destinos.

Porém, o artista deve ter consigo sempre o fato de que fora de seu mundo de criação ele é um ser inegavelmente político e, como tal, reflete, mesmo que inconscientemente, a sociedade em que vive e se relaciona como sujeito. O artista é um agente social como qualquer outro, independente do fato de viver ou não de sua techné. Sendo assim, ao mesmo cabe também procurar entender, dentro de seu ponto de vista e seus próprios conceitos, qual o seu papel na sociedade, quais serão as suas respostas aos estímulos negativos ou positivos que a mesma lhe traz.

O artista não está longe dos efeitos da sociedade capitalista e consequentemente ele terá de se posicionar quanto a isso, direta ou indiretamente. Quando falamos em democratização da cultura temos de ter a consciência de que sabemos o que isso realmente significa e, trocando em miúdos, de que lado estamos. Queremos uma arte para todos? Temos a noção de que a arte é dominada por uma elite? Sabemos que democratizar a arte é levá-la para onde as pessoas não têm acesso a ela? E mais, temos a consciência de que falar em democracia é falar de respeito a toda diversidade de idéias e manifestações artísticas? Temos a noção de que nosso mundo é grande demais e de que arte não está apenas nas galerias e nos grandes palcos? Estamos preparados e suficientemente cientes do que fazemos e em prol do que fazemos? Sabemos que nossa arte afeta o imaginário coletivo e com isso ela é obrigatoriamente usada para manter ou para desafiar um sistema vigente? Afinal de contas, sabemos para que serve a nossa arte? Ou a pergunta seria: sabemos para quem serve a nossa arte?

Parafraseando o dramaturgo Augusto Boal, criador do Teatro do Oprimido, "Todos os seres humanos são atores - porque atuam - e espectadores - porque observam. Somos todos espect-atores”. Tenho certeza de que não há como separar a arte da política, aliás, nada se separa da política, como o próprio Boal comentava, tudo na vida é política, até mesmo quando fazemos amor estamos fazendo política. E esse é o papel de quem fala em democracia na arte, levá-la ao povo e as massas precarizadas, tão sedentas de arte e cultura como as elites dominantes e tão rica de expressividade, ou senão mais rica, que qualquer minoria que se julga dona da arte e da cultura.

.

.

Não há como viver longe dos dilemas e contradições de uma sociedade capitalista e injusta, onde existem explorados e exploradores, dominados e dominadores, oprimidos e opressores; em algum momento ela irá nos tocar. Chegará o dia que teremos de sair da caverna e nos cegarmos com a luz e também descobrirmos que o artista tem um papel social e político e o poder de mexer com a alma e a boca do povo, como explica muito bem a jornalista Rosa Minine, ao se referir ao trabalho da Tribo de Atuadores porto-alegrense Ói Nóis Aqui Traveis: “A rua está repleta de mistificações: a pornografia nas bancas de revista; o consumismo dos outdoors; os enganadores da fé do povo e demais apelos alienantes. Ir para a rua, portanto, tem um conteúdo ideológico cuja diferença está entre adormecer a consciência das massas ou despertá-la. Quando a Arte é colocada a serviço do povo, ela retira dele o melhor de sua obstinação, de sua coragem e determinação de transformar a cruel realidade em que vive, re-elaborando o material e devolvendo a este povo um produto cujo conteúdo e estética são aceitos e reconhecidos como parte de sua luta. E quando isto é feito na rua, constitui-se num verdadeiro embate ideológico com as forças do obscurantismo e do atraso. O povo se identifica com a fala, com os gestos, com a mensagem enfim, e, ao aplaudir, aplaude a si mesmo.”
.
O artista que não tem o anseio de fazer ou participar disso já escolheu o seu lado e ao fazer isso corre o risco de ser absorvido pelo sistema e, mesmo com o poder de sua arte nas mãos, não conseguir sair da caverna que aprisiona os homens e os ilude com reflexos de uma realidade distorcida, ditada por um sistema político que o diz como pensar e agir. Levantar a bandeira empunhada por Artaud e atacar o espírito público requer, antes de tudo, coragem. Coragem essa que somente aflora naqueles e naquelas que não trazem a arte na boca e no status e sim na alma, nas entranhas mais profundas de seus intimo.
.

A sua arte deve deixar de simplesmente refletir a sociedade e passar a ser o seu mecanismo de transformação caso contrário você será enterrado e esquecido na vala comum dos ignóbeis.
.
.
.
.
.
.
.
Créditos da foto: Alexandre Rocrigues.
O título do texto é inspirado no protesto do Coletivo Muralha Rubro Negra, "Para que(m) serve o teu conhecimento?"

5 comentários:

  1. Excelente reflexão!
    É exatamente assim que penso à respeito da nossa RESPONSABILIDADE diante da Sociedade.
    Precisamos estar atentos às necessidades do povo como espectador tal como da própria Classe Artística como Profissional! E aproveito para registrar meu tímido protesto à falta de unidade, de envolvimento, colaboração e cooperação nas questões legais e profissionalizantes dos artistas em geral.
    Para modificar a Política precisamos assumir a responsabilidade por nossa Arte, atentos ao mercado e ao conteúdo.
    JT

    ResponderExcluir
  2. Muito bom Joe! Acho que muitos artistas que estão à margem da produção mercadológica são exatamente o ponto de partida ou manutenção da luta pela transformação.

    ResponderExcluir
  3. O homem é um ser político, já disse Aristoteles.
    É, e consequentemente suas ações são políticas, como vc mesmo disse. Levar a artes a todos gera gastos, mas gera lucros também, muito lucro, o capitalismo não "deixa barato". Mas essa história é antiga, desde de Lutero (quando resolveu levar a biblia para todos). Alias, antes disso também, quando as obras perderam a "alma" e passaram a ser copiada e/ou produzidas em massa. O capitalismo transforma a arte em Kitsch ao populariza-la. No domingo, na C&A encontrei um bermuda (estilo surf) baseada em obras do Salvador Dali. Bonita e ridicula ao mesmo tempo. A maioria dos jonvens que passar por ali serão atraidos pela beleza da veste, mas duvido que reconheceram/perceberam a arte. Sobretudo, ouvir falar que Dali era "vendido", fazia arte e ganhava muito, pois vendia para publicidade etc. Sua arte já era Kitsch, mas isso é até comum, os grandes mestres faziam suas obras e recebiam por elas. Pode-se dizer que há um pingo de Kitsch em toda obra de arte.

    ResponderExcluir
  4. quando eu desenhava quadrinhos alucinadamente, eu servia a eu mesmo.

    ResponderExcluir
  5. Opa...recebi um email sobre esse blog. Nesse post sobre "arte", fiquei intrigado com algo: qual a definição de arte/artista?

    E mais intrigado ainda com o comentario de Ju Thomaz: "Precisamos estar atentos às necessidades do povo como espectador tal como da própria Classe Artística como Profissional...precisamos assumir a responsabilidade por nossa Arte, atentos ao mercado e ao conteúdo."

    Não é muita contradição em um comentário só?

    Eu não vejo arte em quase nada, atualmente. Salvo algumas obras de cinema, poucas, claro. Teatro? Se perdeu no tempo, atua para ele mesmo. (talvez isso seja arte)

    Pretensão ou romantismo achar que arte mudará ou conscientizará nosso povo estúpido.

    Grande abraço,

    Alex Glaser

    ResponderExcluir