Não importa se só tocam o primeiro acorde da canção. A gente escreve o resto em linhas tortas, nas portas da perseguição. Em paredes de banheiro ou nas folhas que o outono leva ao chão. Em livros de história seremos a memória dos dias que virão. Se é que eles virão...

Não importa se só tocam o primeiro verso da canção. A gente escreve o resto sem muita pressa, com muita precisão. Nos interessa o que não foi impresso e continua sendo escrito à mão, escrito à luz de velas, quase na escuridão. Longe da multidão...

(Humberto Gessinger - Exército de Um Homem Só)

quarta-feira, 5 de janeiro de 2011

INCLUIR AONDE?

. (AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA E A DISPUTA DE CLASSES)
.
.
.

O chamado “Movimento de Inclusão das pessoas com deficiência” no Brasil é o que podemos chamar de, no mínimo, curioso. Desde que comecei a freqüentar as instâncias de discussão desse tal movimento sempre me deparei com várias contradições na concepção político/social que é dada para a luta pela causa das pessoas com deficiência.

.
..
.
.
. .


.
.
Posso começar fazendo talvez a pergunta chave e com certeza a raiz dessa contradição: Que causa é essa? Pelo que o movimento de inclusão luta? As respostas que teria da vanguarda desse movimento, composta em sua maioria por pessoas com deficiência, são as mesmas e batidas de sempre: Lutar para que o deficiente tenha acesso à educação especializada, saúde, lazer, cultura e seja de fato incluído na sociedade. Porém, a pergunta correta é outra, não é “pelo que lutamos” e sim “por quem lutamos” e podemos ir mais fundo fazendo a pergunta: “Incluir aonde?”.

Novamente as respostas positivistas (uma tendência crônica dentro desse movimento) são claras: “Lutamos por todos”. Bem, é justamente aí que está o primeiro erro de concepção. O movimento de inclusão das pessoas com deficiência não é um movimento classista e sim um grupo heterogêneo que diz abranger sem discriminação todas as classes sociais, não importa se você é um cego rico ou um cego pobre, o que importa é que você é um cego.

Essa definição bastante rasa e simplória acaba sendo reproduzida por todos que estão de alguma forma ligados a tal luta das pessoas com deficiência. A total falta de formação política daquilo que podemos chamar de “bases” do movimento de inclusão impede que se discutam assuntos que poriam em xeque as premissas positivistas e de fundo totalmente assistencialista desse grupo social em específico. Até hoje, salvo raras exceções, não vi um Conselho dos Direitos das Pessoas com Deficiência ou uma associação de qualquer área das deficiências discutirem problemas sociais como a péssima distribuição de renda ou o aumento do desemprego. Creio que nunca existiu o debate sobre porque, ao invés de debatermos sobre a colocação de rampas para cadeiras de rodas no centro da cidade, não se discute o porquê nas periferias sequer existem calçadas e tampouco que as pessoas mal têm condições de comer dignamente, que dirá ter condições de ter uma cadeira de rodas adequada.

Uma das razões da inércia das pessoas desse grupo social é que elas são as maiores vítimas dos mecanismos de controle da sociedade, criados e impostos pelos governos, como bolsa família e, no caso específico das pessoas com deficiência, o benefício de prestação continuada (BPC). A anestesia social pela qual essas pessoas passam é alarmante, a indústria da miséria que impera no Brasil tem nessa camada da população um farto banquete; são inúmeras Organizações Não Governamentais e Associações lucrando em cima deles, tendo em vista a realidade em que uma pessoa com deficiência pobre vive, onde muitas vezes o BPC e aposentadoria por invalidez são a principal renda de toda uma família. E é nesse contexto propício para o assistencialismo e “coitadismo” que pouco se consegue fazer no que diz respeito a despertar as pessoas para a realidade de exploração e muitas vezes miséria que eles vivem. Tentar fazer com que reajam a isso é praticamente impossível.

Não podemos esquecer que dentro desse pequeno grupo social as realidades do sistema vigente são reproduzidas exatamente da mesma forma. Outro grande fator que demonstra a falta da disputa classista nesse meio é a constante presença de outro meio de anestesia social, que são as igrejas e demais seitas religiosas que se proliferam como câncer na periferia. Por todo um aspecto específico desse grupo de pessoas é mais fácil ainda para as igrejas trazerem para o seu rebanho aqueles com os quais “somente Deus ainda se preocupa”. Não obstante a reprodução do sistema pode também ser vista claramente na existência de uma elite dominante entre as pessoas com deficiência (ou PCD’s, como recentemente trocaram de rótulo, graças a uma das “importantíssimas” ações do movimento de inclusão), um pequeno grupo de deficientes ricos ou de classe média são os que dominam as direções das Federações de Deficientes e outro grupo (indicado pelo primeiro) se dizendo os representantes dos deficientes assumindo cargos políticos com o manjado discurso “deficiente vota em deficiente”.

Assim começamos a deixar mais nítido quais os objetivos do movimento de inclusão das pessoas com deficiência, ou melhor, da elite dominante que obviamente também existe ali. Ainda podemos elencar mais um fator que tem diretamente a ver com a reprodução do sistema, onde as pessoas acabam, por total falta de politização e identidade de classe, delegando poderes a uma pequena vanguarda que, por sua vez, negocia com empresas e órgãos do governo como deverão ser feitas as agendas de controle social e até mesmo a legislação específica para essa área. Um exemplo bastante ilustrativo disso é que o problema da “inclusão da PCD’s no mercado de trabalho” jamais é discutido em um sindicato, por exemplo, mas sim com os próprios empresários ou mediadores como o Sistema S ou FGTAS (aqui no RS). Mais uma vez não se chega ao fundo da questão, fala-se da grande falta de novas vagas para pessoas com deficiência nas empresas como se simplesmente o desemprego fosse um fator isolado, como se somente as PCD’s enfrentassem esse problema que é de toda a classe trabalhadora. Por outro lado as Associações, devido ao fato de não serem classistas, corroboram com isso. Acabam tomando para si o papel de mediar contratações de PCD’s com as empresas, levantando a bandeira das cotas sem sequer discutir em algum minuto se a tal “política da discriminação positiva” é realmente positiva. Esse papel, que muitas vezes parece ser uma tendência de “guetificação”, é assumido de forma até mesmo impositiva pelas associações quando na verdade um trabalhador, deficiente ou não, deve lutar por emprego, melhores condições de trabalho e salário digno em um sindicato. Nesse caso temos um grave problema também por parte dos sindicatos que não estão preparados para receber uma pessoa com deficiência e tampouco se importam em levantar esses questionamentos.

Finalmente chegamos à pergunta “Incluir Aonde?”. O que me leva a pensar o quão perigosa tem se tornada a palavra “inclusão”, ainda mais quando ela vem acompanhada de “na sociedade”. No meu entendimento e baseado em vários anos dentro das instâncias do tal movimento de inclusão a única conclusão a que chego é de que esse movimento não tem princípios reais e sólidos para construir uma mudança social que permita avanços, tendo em vista que todos os sinais indicam que para o tal movimento a sociedade está exatamente como deveria estar, para o mesmo a revolução social não é prioridade, nem mesmo importante. Sendo assim o nome “inclusão social da pessoa com deficiência na sociedade capitalista” se aplica bem melhor.

.

.

.

.

Em tempo: Pensei muito antes de publicar esse texto aqui, já que o mesmo, como diria fulton Sheen, ofende os homens porque lhes rouba o bom conceito que têm de si próprios. Entretanto, baseado em minhas experiências em estressar a democracia, acho que está mais do que na hora de alguém ter um contra-ponto dentro desse mar de preconceitos velados e positivismo crônico. Prometo não deletar nenhum comentário esculachando o texto (aliás, vou adorar se eles aparecerem).

.

.

.

Créditos da ilustração: Infelizmente não sei quem é o autor ou autora desse desenho mas, já sou fã do trabalho dele ou dela. Quem souber, por favor, me manda um e-mail que coloco os créditos certinhos aqui.

.

Aos meus amigos deficientes visuais: Espero que esse blog seja acessível.

5 comentários:

  1. Parabéns pelo blog novo, saudades...
    Estou apagando o meu,mas vou reformular...refazer , enfim, quero apagar tanta tristeza, e recomeçar, quero mostrar mais arte, falar mais de arte, não sei se consigo, talvez eu tenha que ter um blog de arte e outro de reflexões e expressões do meu cotidiano emocional, pois eu acabo falando de tudo ao mesmo tempo, ou até 3, um para falar de assuntos variados e aleatórios do momento, do passado e do futuro. Aparece, vc faz falta!

    ResponderExcluir
  2. Gostei bastante do seu blog. Essas reflexões são intrigantes. Eu mudei de endereço há pouco mais de um ano, vim morar num conjunto habitacional tipo "CDHU" num esquema de "começar de novo". Fico cada vez mais intrigada com um aspecto da população da região: as meninas namoram e engravidam cada vez mais cedo e depois casam-se ou a família da mãe passa a cuidar desse novo ser. Muitas vezes, eu diria mesmo que a maioria das vezes, são pessoas que não tem paciência para cuidar dos filhos, levam uma vida tão difícil que me parecem anestesiadas.
    Tem o caso de uma mulher cujo marido é alcoólatra, ela trabalha numa creche e já está no quinto filho e não tem a menor paciência com as crianças!
    Que adultos serão esses? Se nesta parte da sociedade não se leva em conta as necessidades básicas de uma criança, não só com relação a alimentação, higiene, educação, mas também, com o respeito a vontade ao carinho e afeto e até mesmo o direito a algumas manhas. Essa criança cresce sem perspectiva e anestesiada. Como vai lutar por alguma coisa? Ela vai, feito um robô, seguir os modelos que conhece.
    Eu não sei onde está a solução do problema, só sei que não está com essas pessoas! Eles, assim como os dependentes químicos, não tem condições de sair do problema sozinhos. Precisam de pessoas lúcidas e capazes, pelo jeito não são os políticos, de organizarem sistemas que os tirem dessa apatia social. E eu nem falei das pessoas com deficiência!

    ResponderExcluir
  3. Olá, que bom que existe vida inteligente na internet. Eu não concordo com algumas coisas que vc disse, mas só de ter uma reflexão neste nível é excelente.
    então vou tentar oferecer alguma opinião, sobre o texto.
    Os movimentos transversais não são classistas, por que não ssão revolucionários. Mas podem trazer melhorias para a sociedade.
    O assistencialismo é a mesma coisa não é revolucionário mas traz mudanças sociais.

    Concordo com o fato de que os sindicatos e as entidades de classe tem que estar mais atentas a este debate
    O sistema é feito para se autoreproduzir isto não dá para fazer com que admitamos a lógica do "quanto pior melhor" ou seja deixar de fazer os ajustes que o capitalismo se propõe a fazer e disputar a sociedade. A disputa da sociedade é também a disputa da consciencia de classe e ninguém tem consciencia de classe se tem fome ou se sente fora.
    Na questão judaica marx aborda este problema do ponto de vista religioso era necessário incluir os judeus na sociedade para que a alemanha pudesse concretizar o desenvolvimento de seu Estado. Me parece o mesmo com as minorias. No caso destas, ao contrário do bolsa família, trata-se de garantia de direitos e não de assistencialismo.
    O que me leva ao próximo ponto o sentimento de inclusão é a garantia dos direitos e de oportunidades minimamente iguais, bem como a questão subjetiva.

    Mas concordo com a pergunta incluir em que? e que é necessário fomentar a consciencia de classe nestes movimentos. O que, na minha opinião, só poderá ocorrer a partir de uma organização verdadeiramente revolucionária.

    Abraços

    ResponderExcluir
  4. O ponto que gostaria de escrever um pouco é sobre a questão de não se encarar as coisas com a visão de classe. Ficar esperando pelo assistencialismo só vai perpetuar a separação abismal que existe entre as classes, além de deixar as pessoas longe do foco, pois a assistencia traz algum benefício imediato que tapa os olhos dos cidadãos.

    ResponderExcluir
  5. Ops..Concordo e discordo de tudo que você escreveu...ao mesmo tempo!! rs...

    Primeiro assim: Os sindicatos (não sei se és sindicalista, sindicalizado ou algo parecido) não servem mais para nada, não representam ninguém, somente os próprios diretores sindicais e suas pseudo-lutas de classe. Legislam em causa própria, mesmo não pertencendo mais a classe operária. São vanguarda deles mesmos. (Minha opnião)

    Segundo: qualquer organização de grupos sociais, mesmo que seja para "causas secundárias" é louvável. O homem NÃO é um ser político. Ele pode se tornar um, e esses pequenos movimentos podem ser o começo. São lutas específicas que não me dizem nada, não afetam meu dia-a-dia, mas tem valor para que se sente representado por essa causa. Concordo que a luta deveria ser mais profunda, mas isso pode ser encarado como um começo. Pedir uma luta marxista para essas pessoas levará um certo tempo ainda.

    Esqueça a palavra REVOLUÇÃO. Ela não existe e se existe, serve a fins obscuros, SEMPRE. No caso real, palpável, só nos cabe a palavra REFORMA.

    Grande abraço,

    Alex

    ResponderExcluir