Não importa se só tocam o primeiro acorde da canção. A gente escreve o resto em linhas tortas, nas portas da perseguição. Em paredes de banheiro ou nas folhas que o outono leva ao chão. Em livros de história seremos a memória dos dias que virão. Se é que eles virão...

Não importa se só tocam o primeiro verso da canção. A gente escreve o resto sem muita pressa, com muita precisão. Nos interessa o que não foi impresso e continua sendo escrito à mão, escrito à luz de velas, quase na escuridão. Longe da multidão...

(Humberto Gessinger - Exército de Um Homem Só)

terça-feira, 1 de março de 2011

UMA FÁBULA DE CARNAVAL

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Esse texto foi publicado originalmente no Jornal Gazeta do Sul, da cidade de Santa Cruz do Sul, local onde momentaneamente eu existo. Trata-se de uma homenagem humilde de um artista plástico que se rende a rainha das artes populares, um pequeno texto inspirado em minhas conversas com a amiga Isabel Ferreira e embalada pelo estrondo das baterias de nossas bravas escolas de samba. Trata-se também de uma crítica (desculpem, dessa parte eu não abro mão) a nossa pequena provincia, cercada de uma periferia negra e parda que ainda insiste em manter uma tradição germânica postiça (como diz um sociólogo amigo meu). Uma pequena cidadezinha do interior do Rio Grande do Sul que para a infelicidade das pessoas boazinhas que aqui residem e para a felicidade da minha mãe não pretendo deixar tão cedo.
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UMA OUTRA SÉTIMA ARTE
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Quando, em 1923, o italiano Ricciotto Canudo publicou o seu famoso Manifesto das Sete Artes tinha como principal intuito apresentar ao mundo a mais moderna das artes na época: o cinema. Segundo Canudo, entusiasta da recém batizada sétima arte, o cinema, além de ser uma modernização do teatro, era um amálgama perfeito de todas seis artes clássicas descritas por ele no manifesto (música, dança, pintura, escultura, o já citado teatro e a literatura). Para o autor as seis primeiras artes conseguiam individualmente demonstrar todas as formas de se expressar do ser humano, através do som, do movimento, da cor, das formas, da representação e da palavra; sendo assim o cinema nada mais era que a sublimação até então inimaginável da fusão harmoniosa de todas essas expressões em uma e definitiva arte.
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Imaginemos agora um fábula moderna, bem ao estilo dos clássicos enredos das escolas de samba, em que Canudo não fosse italiano e sim brasileiro, em que o jovem de vinte e quatro anos não tivesse ido morar em Paris e sim no Rio de Janeiro, em que, ao invés de frequentar os ambientes da vanguarda do cenário cultural parisiense, tivesse ele frequentado a vida boêmia da Lapa e em seu círculo de amigos não estivessem Guillaume Apollinaire, Georges Braque, Picasso e Ravel mas sim Donga, Heitor dos Prazeres, Noel Rosa, Cartola e Ary Barroso.
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Teríamos hoje então um Manifesto das Sete Artes um pouco diferente, com um pé no samba e outro na avenida. Se tal manifesto fosse brasileiro nosso carnaval e toda a sua cor, movimento, som, formas, representações, poesia, ocuparia o merecido lugar de sétima arte, a mais completa de todas as artes do Brasil, a mais democrática e a mais encantadora das artes do mundo.
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Essa fábula, não tão obstante da realidade, pois o carnaval realmente traz consigo a aglutinação de todas as manifestações artísticas possíveis, a cada dia perde um pouco mais de seu encanto em nossa cidade. A cada ano vemos nossos gestores públicos investindo menos em nossas escolas de samba, esquecendo que Santa Cruz do Sul é uma cidade brasileira, com diversidade cultural e étnica que precisa e deve ser respeitada e que é cada vez mais jogada para último plano. Como membro ativo da cultura dessa cidade, temo que, mesmo a despeito do povo que quer e precisa de diversidade cultural (e como bons brasileiros querem ter carnaval aqui também), mais uma vez nossos governantes e empresários locais teimem em permanecer na contramão dos avanços históricos do mundo e se fechem em uma tentativa de não aceitar que Santa Cruz do Sul há muito tempo é uma cidade multicultural. Resta a nossos políticos entenderem de uma vez por todas que o povo tem o direito de expressar sua cultura e os governantes têm o dever de viabilizar isso.
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E não falo apenas de trinta minutos de desfile (que nem em uma avenida pública e aberta pode mais ser realizado), falo de um ano inteiro de dedicação de centenas de pessoas, em sua maioria trabalhadores e trabalhadoras, que se dedicam por amor as cores de sua escola a um momento único para eles. Falo de um aspecto cultural importantíssimo do carnaval, da união comunitária e do convívio de famílias inteiras em torno de uma arte. E falo que até esse convívio familiar nos ensaios e nos barracões tem sido negado aqui em nossa cidade. Temo que nossas empolgantes e valentes baterias, que fazem nossos corações baterem mais forte quando passam, sejam vencidas pela desanimadora situação em que o carnaval de Santa Cruz se encontra, que seu ritmo frenético siga o ritmo do descaso que sofrem e transformem nossos sambas-enredo em uma triste marcha fúnebre.
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Veja o texto no Jornal Gazeta do Sul
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Créditos da Ilustração: Joe Nunes (eu também!)
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