Não importa se só tocam o primeiro acorde da canção. A gente escreve o resto em linhas tortas, nas portas da perseguição. Em paredes de banheiro ou nas folhas que o outono leva ao chão. Em livros de história seremos a memória dos dias que virão. Se é que eles virão...

Não importa se só tocam o primeiro verso da canção. A gente escreve o resto sem muita pressa, com muita precisão. Nos interessa o que não foi impresso e continua sendo escrito à mão, escrito à luz de velas, quase na escuridão. Longe da multidão...

(Humberto Gessinger - Exército de Um Homem Só)

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

O DISCURSO DO BRANCO POBRE

O racismo no Brasil está nos detalhes e eles afloram quando as pessoas têm seu ego (ismo) cutucado. Racismo, alienação e discurso reacionário andam juntos.



As políticas afirmativas de discriminação positiva através das cotas em concursos públicos e em universidades para negros e pardos vem trazendo à tona o que o historiador Matheus Skolaude, em entrevista para o documentário “Griô”, chamou de “racismo à brasileira”.



Os argumentos contra as cotas são sempre os mesmos e seguem até mesmo uma sequencia (sem nem um aprofundamento em nada): Acusam as cotas de racistas (ninguém disse que não eram, se não fossem discriminatórias não seriam cotas), depois partem para a justificativa de que o mundo mudou e “hoje as coisas são diferentes” (segundo quem? Segundo a VEJA ou segundo o os milhares de brasileiros que vivem abaixo da linha da pobreza?), então vem a fantástica e prática solução de melhorar o ensino médio! (perfeito, salco o Brasil não tovesse uma educação sabotada desde a educação infantil e que, mesmo com uma reforma na educação isso levaria no mínimo algumas décadas – As cotas devem ser encaradas como medidas paleativas enquanto a tal reforma não acontecem, ou seja, trabalhando com um fator chamado realidade: as cotas no Brasil vieram pra ficar).

E por último vem o argumento do “branco pobre”. E é nesse ponto que as máscaras do preconceito racial começam a escorregar das faces. A imensa maioria dos que defendem o manjado discurso “as cotas deveriam ser sociais e não raciais” é por que se sente lesada. No entanto esse sentimento nada tem a ver com uma analise social e política feita de forma coerente.

Criam toda uma falácia de "vamos discutir isso melhor" quando na verdade é o cotovelo que está doendo, é a cultura reacionária falando mais alto. São reações que partem do pensamento individualista dessa gente, do "primeiro eu", do seu perfil altamente competitivo que não quer ficar de fora e nitidamente se consideram “pobres esclarecidos” (e a mesma turminha de ignorantes que criticam o Bolsa Família, o Auxílio Reclusão e a Redução de Danos não por terem fortes argumentos contra essas políticas públicas, mas sim por preconceito de classe e raiva por estarem de fora da lista dos que recebem, segundo suas visões estreitas, esses pribilégios).

Como coloca muito bem omeu amigo Luiz Augusto Queiros, o Guto, a pobreza no Brasil tem cor. As cotas para negros e pardos são a prova documentada de que o Brasil é um país racista e de que foi necessária a criação de uma legislação específica para minimizar os danos causados por essa cultura. O buraco é bem mais embaixo do que discutir se as cotas são boas ou más (deixem o maniqueísmo para a novela das oito), elas são, isso sim, necessárias e urgentes. Para um pais onde ninguém é racista e todos se orgulham de serem multicoloridos é estranho o tema ser sempre tratado de uma forma cheia de dedos, com muito cheiro de hipocrisia e é igualmente intrigante que a fala “até tenho amigos negros, inclusive freqüentam a minha casa” ainda passe nas rodas de conversa como um belo exemplo de não racismo. Estranho também é e o termo “tolerância racial” ainda é visto com bons olhos nos discursos institucionais. Essa pergunta já foi tema de uma campanha muito bem bolada e vale à pena ser reptida sempre que necessário: Mas afinal de contas, onde guardamos nosso racismo?

Vejamos essa declaração onde uma menina, em uma certa rede social, abertamente coloca os negros todos no mesmo saco e afirma são oportunistas:

“O preconceito existe sim ainda no dia a dia, e muito, mas o negro não é mais um coitadinho. Ele próprio SABE que isso é uma forma de preconceito, maaaas, como é conveniente, fica quieto”.

Baseada em que ela afirma que toda uma etnia (ou raça, como queiram) está achando essa ou aquela lei conveniente? É impressão minha ou a moça está deixando a entender que todos os negros do Brasil são aproveitadores? Eu realmente tenho problemas em entender as coisas, será que ela perguntou à todos ou negros do Brasil ou ela está jungando todos de forma prévia? Ou será que tudo isso é simplesmente por que ela está brava por estar de fora do que ela julga ser um privilégio? (a falta de aprofundamento em qualquer questão faz com que nosso julgamento das atitudes dos outros seja, a priori, baseado em nossas próprias reações e atitudes). Mas vejamos a próxima defesa anti-cotas, igualmente pinçada daquela rede social:

“Parte meu coração, ter menos chances de entrar numa faculdade por causa das cotas”.

Será que é apenas mais uma impressão minha, mas essa outra menina parece estar querendo dizer “por causa dos negros”? Definitivamente não, racismo dá cadeia, e ela não iria querer ir para cadeia.

Espanta-me a petulância dessas pessoas que têm como único argumento as suas “experiências de vida” e sua “opinião própria” (não tão própria assim, diga-se de passagem...) tentando, por razões mesquinhas e por vingança por nunca “ganharem nada apesar de se comportarem como perfeitos cidadãos, contrapor os argumentos e estudos de dezenas de anos feitos e estruturados por pessoas extremamente sérias e competentes que resultaram em políticas públicas como o Estatuto da Igualdade Racial e as leis de cotas (e não me refiro aos políticos e sim as centenas de historiadores, antropólogos, sociólogos, ativistas do movimento negro e tantos outros que lutam por essa causa). É irritante o quanto ficamos até mesmo sem argumentos quando os papagaios dos telejornais e das revistas semanais vomitam suas falas enlatadas, com toda a sua moralidade e sapiência.

Mas, peço aos descontentes que me provem que estou errado, coloquem um branco e um negro em iguais condições (desde estudo até roupas) e me digam o que pesa no final senão a cor. Mas não respondam publicamente, sua conversa fiada de “o mundo mudou” e “falar em racismo só aumenta o racismo” a gente já conhece, não percam seu tempo. Quero que respondam pra vocês mesmos, pois, no fundo das suas hipocrisias tem muita coisa guardada e de vez em quando é bom dar uma remoída.


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